16 de novembro de 2013

OS PRIMEIROS SERES HUMANOS, Roselis Von Sass. Ordem do Graal. São Paulo. 1975.

Roselis Von Sass (1906 – 1997) austríaca de berço, brasileira de túmulo, defende a teoria da existência de um arquivo dos tempos onde tudo está registrado e nada se perdeu, inclusive, a vida humana desde o seu nascedouro. E que, existem aqueles capazes de perscrutar esse passado. Assim se processa toda sua produção literária.

Os primeiros seres humanos abriga uma teoria que se opõe ao criacionismo fixista (o homem foi criados por Deus a sua imagem e semelhança permanecendo estático no tempo e no espaço) pela posição de os pesquisadores da bíblia relacionar os fenômenos nela descritos com a Terra, chegando inclusive, a procurar nela, o Paraíso. Também se opõe ao evolucionismo (as espécies superiores provieram das inferiores num processo lento e gradual possibilitando a passagens de formas imperfeitas (simples) a formas mais perfeitas (complexas) em busca da perfeição, que acontece na medida em que há uma transformação nas espécies, causada por fatores internos (genéticos) e externos (ambiente) a essas espécies) que afirma que o homem proveio de um ancestral comum a ele e os Símios (macacos). Embora seja a teoria mais aceita em relação à origem do homem, a autora a condena ‘por efetiva força de convicção’, uma vez que os evolucionistas continuam à procura do chamado ‘elo perdido’. 

Diante de tais considerações levanta a hipótese, que ela chama de ‘suposição lógica’ - da existência de um animal capacitado a receber o 'ser humano' - os Babais. Ao Invés de almas animais - encarnaram almas humanas nesses ‘primatas’. A autora utiliza-se dessa palavra para designar ‘aquele que existiu primeiro’ no planeta destinado ao acolhimento do espírito humano, a Terra. Com o aparecimento do humano iniciou-se na Terra uma nova era – a era do espírito!

O ritmo lendo da matéria utilizou-se de três milhões de anos divididos em cinco períodos, de 600 mil anos cada, para o desenvolvimento humano da Terra: nascimento, crescimento, amadurecimento, ações, colheita e iluminação. Com relação ao seu povoamento pelos babais, não ocorreu de maneira indiscriminada. Ocuparam sete diferentes locais, denominados de ‘berços da humanidade’, cada um destinado a uma raça: Marae, no continente polinésio submerso existindo ainda hoje nas ilhas de Sandwich, Damoa, Taiti e na Nova Zelândia; Thule, sob o gelo no polo norte; Arzawa, na região da Mesopotâmia e Caldeia; Yoni, sob as areias do deserto de Gobi; Avari, no Havai e proximidades submersas pelo Oceâno Pacífico; Tholo, na região do Quênia na África; e, finalmente, Ophir, o continente de Gondwana, cuja última parte a submergir foi o espaço terrestre que ligava a África a América do Sul.

‘Setecentas almas humanas de beleza perfeita encarnavam-se pouco a pouco nas mães babais! E poucos meses depois ocorria na Terra, no maravilhoso oásis verde do Universo, o maior e mais importante acontecimento desde a sua existência: o nascimento do ser humano!’.

Na idade reprodutiva, de acordo com a lei da igual espécie, somente atraíram almas correspondentes a sua espécie e raça. Uma mistura era impossível! Contudo, continua a autora, não mais eram espíritos escolhidos que vinham à Terra, mas, sim, espíritos que haviam se desenvolvido na Criação posterior, nos mundos de matéria fina. Desenvolvidos de germes espirituais saídos outrora do Paraíso em direção à Criação posterior.

Cumprida sua missão os Babais foram desaparecendo pouco a pouco por morte natural ou cataclismos, espiritualmente voltaram aos seus reinos.

‘Entes do espírito – assim eram chamados os seres humanos, em contraste com os entes da natureza. Esse nome foi usado durante longos espaços de tempo, até que perdeu a sua razão de ser. Isto aconteceu quando os seres humanos se transformaram em - entes do cérebro’. O homem se arvora a Deus no mundo de Deus, ‘ao submeter-se integralmente ao raciocínio, colocando-o como senhor dominante e não o utilizando como mero instrumento... ’.



Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)

12 de novembro de 2013

História da história e outras poesias / Valéria Belém. Ilustrações Adriana Mendonça. – São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005.

Lindo é o lugar onde as luzes da cidade não apagam o brilho das estrelas. Lá a gente sentava na boca da noite com os nossos pais que chamavam a oralidade histórias recheadas de ingredientes: aventura, fantasia, mistério e medo. Ricas em personagens que nos levavam a vaguear a imaginação: o marinheiro inglês Robson Crusoé, chapeuzinho vermelho, o burrico voador, o nego d’água, dentre outras. Outro ‘mundo’ dentro do mundo. As delícias infantis longe da realidade da adultez. Porém, o homem que caminhava no tempo e no espaço resolveu a correr. E correu muito! Nessa corrida surgiu o satélite, a televisão, a parabólica, o vídeo-game, o computador, a internet, as redes sociais, o celular, o tablet, o smartphone e com eles se foi todo o romantismo infantil. Até parece que as crianças de hoje já nascem adultas. Daí o diferencial entre escrever para um adulto e escrever para uma criança.

Na literatura infantil asseveram alguns historiadores que as histórias tradicionais não foram escritas especificamente para crianças, faziam parte da ritualística cotidiana de algumas comunidades trazendo mensagens de cunho moral e alerta a comportamentos inadequados. A partir do século XII, autores como Giambattista Basile (1634), Perraut (1697) e mais adiante Grimm (1812) fizeram o registro escrito dessa oralidade.

Valéria Belém desde muito cedo mostrou a que veio. A facilidade com o manuseio das letras na construção de palavras e estas com frases que expressavam seu pensamento vaticinavam seu futuro: jornalista e escritora reconhecida e premiada nacionalmente. Editora dos cadernos de cultura, magazine e almanaques no maior jornal do Centro-Oeste brasileiro, além de mais de uma vintena de livros infantis publicados e adotados pelo MEC – Ministério da Educação e Cultura – atestam o seu sucesso.

História da história – e outras poesias - título tomado por empréstimo de uma poesia onde a autora trabalha a questão da família cumpre esse primordial papel de educar, palavra de origem latina educere com significado eduzir, isto é, criar valores e colocá-los a disposição da sociedade. Como assevera Richard Bamberger, ‘O desenvolvimento de interesse e hábitos permanentes de leitura é um processo constante, que principia no lar’ - muitas vezes através de fábulas, contação de história ou livros infantis - ‘aperfeiçoa-se sistematicamente na escola e continua pela vida afora através das influências da atmosfera cultural e dos esforços conscientes da educação e bibliotecas públicas’. Completado esse processo educacional com a instrução, isto é, trazendo para dentro do indivíduo conhecimentos adjacentes - sujeito e objeto estarão contemplados - o resultado é um homem integral, como diria o saudoso filósofo e professor Huberto Rohden.


Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)       

16 de outubro de 2013

AMORES DE NAPOLEÃO, Idibal Almeida Pivetta: Edições O Livreiro. São Paulo. 1960.

A par de Cristo e Abraham Lincoln, Napoleão é a personalidade sobre quem mais se escreveu. Cerca de quarenta mil trabalhos, entre biografias, ensaios, peças de teatro, artigos se contam acerca do tema[i]Porém, todos, sem exceção, viraram e reviraram, mexeram e remexeram, pesquisaram e tornaram a pesquisar com o fito de encontrar o verdadeiro, o real Bonaparte... E no fundo a explicação é tão simples: Napoleão foi apenas... Napoleão! Seus arrebatamentos, com poucas exceções, tiveram sempre a norteá-los um interesse superior ou visaram uma satisfação meramente fisiológica...

Na infância, com Giacominetta, os primeiros passos na arte de amar acompanhados de perto por sua mãe, Letizia Ramolino, e das amas - Camila e Catharina. Amor inocente. Amor que jamais ousou além de um beijo numa tarde de chuva. Amor que soube por parte dela aceitar o outro com sua personalidade; com a revolta pela derrota de sua terra natal: Mamma, tudo perdido! Paoli rendeu-se. A Córsega já não existe! Amor que manifestou ciúmes e medo diante do desejo dele, em lutar pela soberania da pequena ilha com a espada do apóstolo Paulo, a quem havia oferecido uma vela numa de suas visitas a Igreja. A história não se repete. Também, ela é um rio cujas águas jamais voltam atrás. Pouco tempo depois, Giacominetta ouvia soar a estridente sirene de um navio minúsculo e sujo. Era o anúncio de partida para o continente. Nele, o amor de infância seguia rumo à França em busca melhor escolaridade. Ficavam a saudade, as lágrimas, às lembranças, o gosto do primeiro beijo e a curiosidade feminina nascente que fazia suas primeiras cócegas.

Bernardine Eugênie Desirèe Clary, menina-moça, de formas arredondadas, cabelos castanhos presos em coque, nariz graciosamente arrebitado. No rosto sobressaindo os olhos espertos e saltitantes e a boca pequena, sensual e ingênua que no primeiro encontro sentiu ao mesmo tempo a ternura e a violência dos lábios do general. Desirèe, a caçula da família Clary, comerciantes de tecidos de Marselha. Logo, teve que se arriscar ao visitá-lo na prisão. De um lado, ela apavorada, e de outro, ele falando estar bem! Muito bem, a ponto de lhe falar da proposição de organizar um regulamento para os presos. Um regimento interno rígido! Naquela prisão qualquer um poderia fugir. Uma questão de vontade e determinação. Era fugir, ou esperar que o levasse a guilhotina. Desirèe levava um bolo de aniversário, e dentro dele, uma mensagem de Junot. Saia com uma correspondência para Junot e outra para a Convenção. Cinco meses haviam se passado. Eugenie! grita Marie, com uma carta nas mãos. É de Paris! Ao abrir a missiva uma decepção: ‘Eugenie querida, abraços. Lamento não poder ausentar-me e levar pessoalmente a boa nova. Sou o comandante da Guarda de Paris. Tudo aqui me sorri. Reconhecem o meu valor. Já não é sem tempo... Jamais poderei agradecer o quanto você, me auxiliou... Agora que nossas vidas se distanciam... Tomam rumos diferentes... Eu desejo que a felicidade nunca se afaste de você... Talvez... No futuro...’. Neste instante, José, irmão do general e cunhado de Desirèe interveio: _Que diz Napoleão? A essas alturas, Napoleone Buenaparte 'deslatinizava-se' para Napoleão Bonaparte. Como poderia um general corso, com o nome grafado em italiano assumir a França? _Não há notícias de Napoleão, respondeu Desirèe, calma, sem raiva, sem mágoas, apenas com um enorme vazio no peito e um vácuo na alma.

Uma balzaquiana com tez cor de malte. Exótica e de trejeitos graciosos. Ar indolente, cheio de ternura e pleno de promessas. Cumpre o verdadeiro ritual francês ao levantar levemente o lábio superior ao falar. O general questiona pela senhora. _A de roxo! _Ah não, Napoleão! Josefina não! Viúva, pobre, perigosa e amante de Barras. Depois de comandar o exército republicano num verdadeiro banho de sangue nas escadarias da Igreja de São Roque, salvando a Convenção e dando conhecimento à França de seu novo amo, Napoleão recebe um jovem solicitando a guarda da espada do pai. Seu nome? Eugênio Beauharnais, filho daquela que lhe encantara. Concede a guarda da arma ao garoto e pede ao mesmo que leve alguns papéis à Josefina. Eram os recibos de quitação de aluguéis atrasados. Daí para o enlace matrimonial entre ambos foi quase nada. Bonaparte obtém votação favorável ao Império. A gigante nave da Catedral de Notre Dame tornara minúscula diante de tamanho evento. Fogos espocavam. Bandeiras esvoaçavam. Rufavam-se os tambores. Por ordem de Bonaparte, o cetro havia sido copiado do original de Carlos Magno, também, a coroa de louros de ouro. O papa Pio VII, inesperadamente, vê o diadema ser arrancado de maneira abrupta de suas mãos. Era Napoleão. Auto se coroou na noite de natal do ano de 400. Em seguida coroava Josefina. A única tarefa papal foi abençoar o imperador e a imperatriz. Ao passar pelo antigo notário de Josefina, Raguideau, se dirige a imperatriz ironicamente: _Ainda achas que eu só tenho a capa e a espada? Naquele momento ele tinha a França!  O que é um império sem um herdeiro? Napoleão via nele a perpetuação de sua obra, então: _Perdi a esperança de ter filhos de meu consórcio com a Imperatriz Josefina. É isso que me leva a sacrificar a mais doce afeição de meu coração, a escutar apenas o bem do estado... ’ Na manhã seguinte Josefina deixava as Tulherias onde imperou por mais de dez anos. O grande coche vai diminuindo de tamanho em proporção a distância percorrida. Nas escadarias do palácio, um homem enxuga lágrimas que banham sua face, em uma das raras vezes em sua vida.

De um lado um imperador precisando de um herdeiro; de outro, da França clamando por segurança através da estabilização do regime; por isso, Napoleão foi ao encontro de Maria Luisa. Por ele, teria desposado Walewska, mas precisava de um filho na dinastia. Uma Habsburgo daria a ele a legitimidade almejada. A princípio ela refugou. Mas, quando recebeu a primeira carta, ao passar os dedos sobre o sinete em relevo com as representações das armas francesas, nos seus dezesseis anos, despertou: dentro de pouco tempo poderão ser os meus brasões. Eu, Maria Luisa, imperatriz da França! Já casados, chovia muito quando do encontro de ambos. Da parte dela, um susto o encontrá-lo encharcado, porém, assim reagiu ao esposo: sois bem melhor que vosso retrato. Napoleão não teve tanta sorte. Maria Luisa não era bonita. Pálida, Magra, com sinais de bexigas, lábios grossos, olhos azuis descorados, plácidos e bovinos, e mais alta que ele. Seu consolo foi observar seu busto elegante saltando sem recatos à luz das casas, durante a passagem por uma cidadela. Num parto complicado a imperatriz deu ao esposo o tão esperado varão. Os sinos se fizeram ouvir, o povo saiu às ruas e os canhões troaram. Em 5 de abril de 1815, Napoleão abdica em Fontainebleau e segue para a ilha de Elba, de onde manda o conde Laczinski buscar Maria Luisa e o filho, 'o rei de Roma'. A principio a imperatriz fica reticente, e, quando concorda com o plano do marido é impedida pelo militar que seu pai, Francisco da Áustria, colocara para protegê-la. Reagiu energicamente até que soube que o enviado de Napoleão era irmão de Maria Walewska, que se encontrava em Elba. O estafeta volta com uma carta da imperatriz, a última a Napoleão, onde declara ‘não quer, nem deve, mais ir à ilha de Elba’.

'Se fosseis homem teríeis entregado vossa vida à causa da pátria. Sendo mulher, não podeis servi-la nos campos de batalha. Mas há outros sacrifícios, aos quais não vos deveis furtar... Acreditais que Ester se entregou a Assuerus por amor? Ela, porém, sacrificou-se pela pátria e teve a glória de salvá-la. Possamos nós, dizer coisa idêntica de voz’, apelo do governo provisório da Polônia a Maria Walewska. O Palácio Walewice serve de abrigo para socorro de um cavaleiro do exército do imperador, Duroc. Deles aproxima-se uma jovem com uma camisola a esconder sua nudez. A transparência do tecido realça sua beleza expondo suas formas. É linda! Uma beleza diferente de tudo que o imperador tinha visto na França. Miúda, mimosa, delicada, de olhos azuis profundos e tristes, nariz reto embelezando uma boca de lábios róseos polpudos. A jovem estende a mão aos cumprimentos e o imperador ouve-lhe o nome, Maria Walewska. De um lado, um imperador sedento, de outro, os poloneses fazendo pressão para que Walewska, casada, se tornasse amante de Napoleão em nome do amor pátrio. Deu ao imperador o seu primeiro filho, Alexandre, com quem foi visitá-lo na ilha de Elba. Numa tarde, os sinos da igreja da aldeia de Marcianna ecoavam tristes pelos espaços infindos. Napoleão ternamente dirigiu-se a Walewska: _Sempre amei os sons de sinos de aldeia. Naquele momento, Maria entendeu que era o momento de partir... Seria muita pretensão querer deter o homem que deteve o mundo!

_Mas, vossa majestade não é um homem comum. É Napoleão! Responde uma jovem bonita, loira olhos azuis, nariz arrebitado, boca brejeira, corpo de mulher coberto com um vestido azul, a um questionamento do preso mais famoso da ilha de Santa Helena. Num passeio a cavalo, numa dessas paragens para descanso, sua majestade batia com o chicote em uma das mãos, quando Betsy Balcombe ergue a mão e prende-o, roçando sem querer os dedos na mão do imperador. Olhares se confundem. Mãos se juntam abrindo caminho para os lábios que se entrelaçam com fúria, levando-os a circundar um bosque de gouveias... Betsy era apenas uma menina. Criança que em brincadeira chegou a colocar a ponta da espada no botão da jaqueta do imperador como se fosse arrancá-lo. Um romance 'espetaculoso' que corria de boca em boca na pequena ilha. Em nome da glória de antanho, um de seus generais 'pisando em ovos' o aconselha afastar-se de Betsy. Aos berros, no jeito Napoleão de ser acabou cedendo. Em nome da Glória! Moribundo, entre os sussurros desconexos, uma palavra e uma frase são inteligíveis: ‘França’ e ‘cabeça de exército’. Depois o silêncio...
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A tempestade amainou.
O canhão troa. O caixão desde à campa. É um túmulo simples. No vale do Gerânio, bem ao lado da fontezinha, onde os criados chineses iam buscar a água cristalina para ele. Três salgueiros solitários estendem, sobre o jazigo, sua sombra amiga.
Colocam a laje.
Vagarosamente todos vão deixando o vale. Não fica ninguém...
As sombras começam a descer. Escurece. No crepúsculo, amoitadas, fardas vermelhas, cuidadosas, espreitando, aproximam-se. São soldados de Inglaterra! Da guarnição de Santa helena! Acercam-se do túmulo. A uma voz de comando perfilam-se. Apontam as armas. Fogo! Uma salva! A derradeira, às escondidas.
Cautelosos, temendo castigos, os soldados afastam-se. Por último, vem um sargento, pela mão puxa um garoto.
_Por que esse segredo, papai?
_Porque esse homem é Napoleão.
O menino estranha.
_Mas Napoleão não foi inimigo da Inglaterra?
O sargento inglês, veterano de tantas batalhas, pensa um pouco. ‘Inimigo? Ele? Seria? Waterloo... A carga da cavalaria de Ney’... – coça o antebraço esquerdo, bem na cicatriz, lembrança entusiástica da Guarda: Viva o Imperador! Pousa a mão na cabeça do menino e responde: _Não, meu filho, Napoleão foi o maior soldado do mundo!

Idibal Almeida Pivetta, autor

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O último capítulo recebe o título de ‘o verdadeiro amor’. À época da ocupação nazista, um historiador perambulando pelas ruas de Paris resolve ir até o túmulo de Napoleão, nos Inválidos, para por a prova a história de uma mulher vestida de preto, com a face velada, que costumeiramente era vista colocando flores vermelhas no túmulo do imperador. E conseguiu... Seu nome, GLÓRIA!

Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)




[i] São dados referenciados pelo autor no ano de 1960 do século passado.

15 de outubro de 2013

CAMINHANDO NA CHUVA, Charles Kiefer. Edição comemorativa de 30 anos. São Paulo: Leya, 2012. 146 páginas.

Gosto de ler este autor. É a segunda obra sua que por coincidência vem até mim. A primeira foi “Para ser escritor”, um livro escrito para todos que gostam de escrever e que têm a pretensão de um dia ver um livro seu impresso. Nada contra os sítios com suas bibliotecas virtuais, com seus livros e revistas eletrônicas. No livro um questionamento: terá alguém a coragem de se dizer escritor com um “Tablet” debaixo do braço? Um livro eletrônico? Não! Ainda não. Um dia quem sabe?

Voltando ao 'caminhando na chuva', nada como almoçar em um shopping, dirigir-se a uma boa livraria, caminhar até a cafeteria e ali passar o resto da tarde entre um robusto café expresso, livros e uma boa água mineral. Folhar um livro é como acariciar a mulher amada. Assim me deparei com o segundo livro de Kiefer.

“Caminhando na chuva” trata-se de uma novela temática adolescente que marcou a estreia do autor na literatura com o privilégio de 20 edições no Brasil, uma em Portugal. Mais de 100 exemplares vendidos.

“Caminhando na chuva” traduz o propósito de contar a história de um jovem pobre que um dia acreditou (mesmo que ironicamente, como asseveram alguns de seus críticos) que “Cultura é uma forma de status”.

“Caminhando na chuva” é ressignificância, resiliência, superação: “Não estou procurando fazer literatura. Quero apenas me livrar dos fantasmas que me assolam, que não me deixam dormir”.

“Caminhando na chuva” nos remete à adolescência sacrificada pelo coração que nem sempre sabe o que é melhor pra gente.

Máximas de “Caminhando na chuva”

A cidade é como uma mulher: para conhecê-la é preciso percorrer com paciência as suas ruas, os seus becos, os seus caminhos.

Mulher é que nem ovelha: vai para o matadouro sem balir.

Pescar é quase como fazer amor, a sensação é parecida.

Não sei ler os poemas do Neruda sem pensar em vinhos brancos, acho que uma coisa está intimamente ligada à outra, mas não sei dizer por quê.

No horizonte, onde o sol beija a terra e a lua banha nas lagoas, Deus conversa com o vento, ambos preparam as tempestades.

O vivido é irrecuperável.

A vida é como uma fotografia: com o tempo perde a cor, desbota, perde o contraste, o brilho. Escrever talvez seja uma forma de recuperar a fotografia, refotografar.

Escrever correto é bonito e dá status.

O sonho é uma forma de ser louco em segredo.

As coisas perdem a graça quando a gente já sabe o que vai acontecer, o bom da vida são as surpresas que ela nos reserva.

Ninguém não põe amor em coisa emprestada, arrendada, alugada.

Não quero horrorizar ninguém, mas acho que casamento é o fim do amor.

O amor não se explica, a gente dá ou sente.

Em vez de a escola propiciar um entrelaçamento, um crescimento maior como seres humanos, uma amizade duradoura, ela provoca a competição.

O pior homem do mundo é o indiferente, porque seu coração é um deserto, e no deserto não nascem flores.

Quando a gente está apaixonado, viajar não tem graça.

A vida não é tão interessante como a literatura.

O ser humano é como a árvore: depois que a seiva se petrifica não dá mais pra dobrar, porque se se tentar quebra.

O jovem ama, e basta.


Vinho branco e poesia. Tenho bebido a última, que também embriaga.

Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)

13 de outubro de 2013

PARA SER ESCRITOR, Charles Kiefer: São Paulo: Leya, 2010.

Uma das frases que a mim marcou literariamente, saiu da boca de um cineasta goiano, João Bênnio: “escrever não tem meio termo; é fácil ou impossível”. 

Embora se utilizando de um advérbio que propõe dúvida ou possibilidade, o autor se opõe a Bênnio afirmando que “talvez não seja possível ensinar a escrever; mas é plenamente possível ensinar a aprender a escrever,” como se não houvesse “no escrever” a “mágica” da criação.

Interessante, porém, a relação que estabelece entre o escritor, leitor, crítico e autor nesse processo de escrever:

[...] “entre o pensamento e a expressão, vibra no ar um ser sutil, fátuo e que, terminada a frase, concluído o texto, se evapora. Nesse átimo, o escritor é escritor. Aí e somente aí.

“Depois, já é o primeiro leitor, o primeiro crítico de si mesmo e não mais escritor.”

“Explodida a bolha de sabão em que planava, começa a surgir o autor, essa derivação vaidosa e arrogante do escritor.”

“É o autor que imagina o efeito que seu texto produzirá sobre os outros, sobre a sociedade; é o autor que sente prazer em ver seu nome estampado na capa de uma obra qualquer; é o autor que se regozija com um comentário positivo da crítica, que se enfurece com o comentário negativo.”


A questão dos títulos:

“Não há escritor que não se debata com a difícil questão dos títulos de suas obras, sejam elas poemas, crônicas, contos, novelas ou romances. O título faz a primeira ponte com o mundo, é o primeiro gancho de interesse, a primeira luz do farol no nevoeiro. A obra está lá, enrodilhada em si mesma, mas escondida, e é preciso uma etiqueta, um visgo ou um guizo para que ela seja percebida pelo possível leitor.”

“[...] um bom título não salva um mau livro, mas um mau título pode prejudicar um bom livro.”

O plágio:

“Ninguém nasce escritor, torna-se escritor. E, às vezes, plagiando outros escritores. Como eu mesmo faço, neste instante, com a frase aí acima, surrupiada de Simone de Beauvoir, que afirmava que  ninguém nascia mulher, tornava-se mulher.”

“E o plágio-plágio, o que seria? Aquilo que fez Paulo Coelho, denunciado por Moacyr Scliar? O mago publicou um conto de Franz Kafka como sendo dele, Coelho. Scliar não teve dúvida: publicou em fac-símile os dois textos, revelando a fraude.”

“Ou o que fez Shakespeare, que escrever apenas 1.899 versos dos 6.043 que são tidos como seus? Shakespeare não teve nenhum pudor em plagiar Robert Greene, Marlowe, Lodge, Peele, entre outros. E nem por isso o achincalhamos.”


Este é o questionamento essencial na leitura que faço sobre a obra de Charles Kiefer, já expresso no primeiro parágrafo desse artigo: “escrever não tem meio termo; é fácil ou impossível”. Ou se cria ou se plagia.


“Liberar dos ombros o peso da obrigação de ser original libera espaço para coisas mais importantes”, afirma Kiefer.“Os plagiários podem roubar nossas palavras e nossas idéias, mas não podem roubar nosso talento: esse é o seu desespero e o seu castigo” contrapõe Vargas Vila.

Ofício de escrever, ou arte em escrever?

Afirma o "professor de escritor" Charles Keifer, “basta mostrar-lhes que as palavras, como os tijolos, estão à espera do habilidoso construtor. Se com elas fazemos muros ou catedrais, é outra questão”. Por si só, a frase encerra o ofício de escrever ante a arte em escrever. 

Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)

8 de outubro de 2013

PAPISA JOANA, Emanuel Royidis: traduzido por Octávio Mendes Cajado da versão inglesa de Lawrence Durrell. Rio de Janeiro. Distribuidora Record

Publicado em 1886, causando horrores a Igreja Ortodoxa que o colocou em seu índex e excomungou seu autor, o livro, um clássico da moderna literatura grega, conta a história de uma mulher inglesa que assumiu o trono de São Pedro durante a Idade Média, por volta do século IX, com o nome de João VIII. Lenda? Realidade? Mistério? Sensacionalismo? Sátira? Há controvérsias.

Sobre o autor, Emanuel Royidis, escreve Lawrence Durrell, a quem o livro foi apresentado num passeio pelos arredores de Atenas, em 1939, pelo amigo Katsimbalis, na vitrine de uma livraria onde se enrugava ao sol. _ Aí está um bom livro – grunhiu Katsimbalis, batendo no vidro com sua imensa bengala, enquanto rolava de uma perna para a outra. _ É o tipo de livro maroto, um livro grego, cheio de  troças, mau gosto, riso e irreverência. Voltando a Royidis, tendo herdado um modesto patrimônio, viajou extensamente e estudou na França e na Alemanha. Republicano, era naturalmente anglófilo, e leu muita coisa em inglês, por prazer e para instruir-se. Já maduro, teve dificuldades de dinheiro e, durante o tempo em que Tricoupis exerceu o cargo de Primeiro-Ministro, foi diversas vezes nomeado funcionário da Biblioteca de Atenas, de onde foi desalojado pela facção realista, que depois assumiu o poder. Viveu pobre nos últimos anos – mas a sua figura barbuda e atarracada era familiar a quantos frequentavam as pequenas tavernas e as pensões da Plaka ateniense. A surdez progressiva deu-lhe aos traços uma expressão de urbanidade e alheamento, que se apropriava muito bem ao criador de Joana. Como ensaísta e panfletário era conhecidíssimo do público ateniense, mas é muito para duvidar que alguma de suas obras nesse campo justificasse uma tradução. Ele foi um homem de um livro só – e, tendo-o escrito, precisou inúmeras vezes defendê-lo, o que sempre fez com muito espírito, ironia e graça. Surdo à crítica literária como tal, melindrava-se, porém, quando insinuavam que a Papisa Joana era uma figura apócrifa. Insistiu até o fim em que pouco enfeitaria a história original, e o seu panfleto sobre as provas da existência da Papisa abriu as comportas de todas as torrentes represadas de retórica e erudição com que ele não quis sobrecarregar a narrativa. Pois Royidis, apaixonado por Joana, não queria vê-la tratada como um mito do século nono.

A história de Joana tem seu início no ano de 818 em Ingelheim, onde foi batizada na corrente gelada do rio Meinengen, pelo marido de sua mãe, Judite, uma vez que foi fruto de um estupro. A pequena Joana desde o inicio de sua caminhada histórica eclesiástica chama a atenção. Recusava os seios da mãe nos dias de quarta e sexta-feira ou durante um período de jejum, às vezes afastando o rosto, horrorizada. Seus primeiros brinquedos foram cruzes, relíquias e rosários. Aprendeu o padre-nosso em inglês, grego e latim antes do primeiro dente, quando já ajudava o pai, desculpe-me, o marido de sua mãe, na catequese das crianças de sua idade. Ficou órfã de mãe aos oito anos de idade, quando no ombro do coveiro proferiu a oração fúnebre de sua mãe.

Logo a desgraça abateu sobre ambos. Mas por um curto período de tempo. Erasmo asseverou algures, que um homem ajuizado pode aprender uma porção de coisas úteis com um urso. E foi o que aconteceu. O velho monge lembrou-se de um dia em que assistiu um desses animais dançando, enquanto seu dono coletava dinheiro entre os espectadores. Eureca! Treinou Joana, uma menina de 10 anos de idade, em perguntas e respostas sobre conhecimento geral que estendia da teologia à culinária. Ao se apresentar nos castelos o velho monge iniciava a sabatina que em seguida era assumida por espectadores, e a menina respondendo na maior desenvoltura. Ao final, Joana fazia de seu avental uma espécie de sacola onde era depositado desde moedas até gêneros alimentícios. Necessidades básicas deixaram de existir. Por um período de cinco anos percorreram os castelos e mosteiros da região do Vístula. Porém, a dor que nos causa a perda de alguém muito próximo lembra a extração de um dente – a dor é aguda, porém instantânea. Depois de enterrar o velho monge, caminhou até o riacho próximo para lavar a face, quando viu seu rosto no reflexo da água se deu conta de estar só. O cansaço lhe abateu à sombra de um arbusto. Dois vultos aproximaram. Uma alcoviteira lhe propondo os prazeres da carne numa vida promíscua, e outra, os mesmos prazeres, só que, resguardados pelo recato. Uma das duas propostas haveria de abraçar. Neste momento de indecisão, outra visão dentro daquela. Viu-se sentada num trono tão alto que a sua cabeça, sobre a qual repousava uma tríplice coroa, quase tocava as nuvens; uma pomba branca pairava junto dela e refrescava-a com o ar produzido pelo bater das suas asas. Multidões se ajoelhavam ao pé do trono; algumas pessoas moviam turíbulos de prata, dos quais se elevava o incenso, que se adensava em torno dela em nuvens olorosas; outros subiam longas escadas para alcançar-lhe os pezinhos e beijavam-nos, devotos. Despertada solicitou àquele que lhe oferecia consolo que a encaminhasse para o convento mais próximo. Utilizando-se do dedo indicador, o velho Arculfo, apontou para Mosbach. Joana agradeceu e partiu. Naquele momento havia optado pelos prazeres resguardados pelo recato.

Do convento de Blitrudes, os fugitivos cavalgaram por quatro horas até de um lago, cuja margem abrigara a estátua de Irmensul, arremessada às profundezas por um sopro de São Bonifácio. Como seus antigos adoradores, o monge Frumêncio e a monja Joana ofereceram algumas gotas do sangue de ambos ao afogado, selando aquela união e, tirando um hábito de monge de seu alforge instou à amada para que aceitasse. Ali morria a noviça do convento de Santa Blitrudes ao tempo em que nascia o mais novo noviço do convento beneditino de São Fuldas. Dessa maneira poderemos viver tranquilos na mesma cela, comendo da mesma travessa, mergulhando as nossas penas no mesmo tinteiro; ao passo que, se descobrirem que é mulher, serás encerrada nos aposentos destinados às mulheres, com outras monjas, e eu morrerei de desespero diante da tua porta, justificou o amado para sua atitude. Foram sete anos de convivência diuturna em São Fuldas, até serem descoberto por um monge eunuco o que os obrigou a uma fuga para evitar a prisão a pão e água. Tal qual Ulisses, no poema de Homero, viveram uma verdadeira Odisseia até chegarem à Grécia, onde com o passar dos anos Joana se deixou levar pela vaidade, permitindo que o segredo de ambos alcançasse as ruas. Chegou a ser vista como monstro mandado pelos francos para subverter a Igreja Ortodoxa. Joana ao refletir que sua sabedoria provavelmente permanecesse desconhecida e sem quem a contasse fora do mundo Ático, passou a sofrer da ‘síndrome de jovens freiras’, que ao se despirem à noite, recordam que sua lirial formosura só será vista pelo noivo imaterial e invisível. Era chegado o momento de partir. Mas partir só. Como? Simples carícias com os dedos nos cabelos e o hálito quente na face foi o suficiente para que o amado esquecesse os maus tratos e até as traições. Cansado adormeceu. Ao acordar no dia seguinte procurou Joana por toda a cidade e não a encontrou. Havia partido para a cidade de Roma, em carona numa embarcação pertencente ao Bispo de Gênova, substituindo o padre que morrera durante a viagem.

Numa noite, São Bonifácio a quem Frumêncio havia gritado por socorro pelo abandono de Joana apiedado pelo sofrimento do monge beneditino, desceu dos céus abriu o peito do rapaz adormecido com uma faca, enfiou os dedos santificados na ferida e dali retirou o coração, mergulhando-o num buraco cheio d’água previamente benzida. O coração que ardia chiou na água benta como anchova em frigideira. Quando esfriou, o santo recolocou-o no lugar e, depois de haver fechado a ferida, regressou ao céu. [...] Dali a pouco passou por ele uma jovem ordenhadora, carregando a ânfora de leite na cabeça e uma grinalda de flores na mão direita. Chamou-a e desfrutou-a completamente. E quando Amarilis tirou a moeda de cobre dos dedos dele, beijou-lhe a mão e seguiu o caminho... Frumêncio, em pé, quedou-se a contemplá-la, compreendendo, pela primeira vez, que na vida, havia outras mulheres no mundo além de Joana. A sua cura pode considerar-se completa. Um milagre do santo salvou-o de uma tola paixão e, consequentemente, ele se torna inútil para nós daqui por diante como herói deste romance – conquanto, a partir de então, se tornasse muito mais útil, como membro da sociedade [...] apto a exercer a profissão que desejasse [...] muito sabiamente, decidiu continuar monge.

Em Roma, padre João não gastou mais que uma hora para impressionar o sumo pontífice que o nomeou mestre de teologia na Escola de São Martinho, onde Santo Agostinho ensinara. Ali, onde a maioria dos padres não sabia ler, João se transformou em pouco tempo num novo Agostinho. Logo sua santidade, alquebrado pelos anos, o nomeou secretário particular. Não demorou muito para que o papa partisse ao encontro do divino. Joana, empolgadíssima não sabia se agradecia a Deus ou ao Diabo. Além dos 400 alunos, Joana contava com os votos dos cortesãos que lhe deviam favores, das mulheres que a admiravam, por aqueles que admiravam sua sabedoria e eloquência. Enquanto se discutia entre os súditos quem seria o novo papa, Joana permanecia imóvel no alto do terraço do mosteiro de São Martinho. Depois de quatro horas foram ouvidos os gritos de seus adeptos saudando João VIII, a profecia através dos sonhos após o enterro do marido de sua mãe se confirmava, a tríplice coroa 'Roma, Mundo e Céus' lhe foram posta sobre a cabeça. Acabava de se tornar senhora absoluta, por direito divino, das almas e dos corpos dos homens, para não falar na administração do Mundo, do Paraíso e do Inferno.

Não demorou muito para irritar-se com o 'estende pé' para os beijos de seus súditos; lembrava com saudade o 'estende lábios' para Frumêncio e seus amantes beijá-los. Embora não acreditasse que Deus houvesse colocado tantas coisas boas diante de nós para serem resistidas, temia as três guardiãs da castidade feminina – o escândalo, a maldade e a gravidez. Joana bem que resistiu, mas a volúpia falou mais alto. Assediou Floro, filho de seu antecessor, com apenas 20 anos de idade. Exercia o cargo de camarista privado. Dormia em um quarto contíguo aos aposentos papais. No primeiro encontro esqueceu-se de cobrir a imagem da Virgem no quarto do amante. O rubor permanece na face da 'madona' até os dias atuais. O Cristo crucificado, de vergonha, caiu no chão e espatifou-se. O Anjo da Guarda de João VIII fechou os olhos diante de tanta abominação. No dia seguinte parecia outro o sumo pontífice. Radiante, sorridente e distribuindo bênçãos a todos que encontrava pela frente. Neste dia, sua Santidade distribuiu quatro bispados, ordenou dezesseis diáconos, acrescentou dois santos ao calendário, comutou a pena de cinco condenados à força e salvou vinte hereges da fogueira. E ainda lamentou não possuir as cem mãos de Briareu para centuplicar as suas caridades.

Por não acreditar que Deus houvesse colocado tantas coisas boas diante de nós para serem temidas, não temeu as guardiãs da castidade. Contorcendo-se no chão era observado pela multidão que esperava o 'espírito imundo', que tanta desgraça causara à Cidade Santa naqueles dias, sair pela boca ou ouvido do Santo Padre, mas, o que se viu foi à retirada de uma criança prematura entre as luxuosas vestes papais.


Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)   

5 de outubro de 2013

FLOR DO SERTÃO, Myriam Fraga. Artes Gráficas e Indústria Ltda. Salvador - BA. 1986.

Breve notícia do amor infeliz da moça Leonídia pelo poeta Castro Alves 

Seis capítulos foram suficientes para que a literatura brasileira fizesse justiça a mulher que, depois de Eugênia Câmara, no entendimento da autora, recebeu os melhores momentos do poeta e lhe inspirou o maior número de poesias.

O livro retrata o amor incondicional de uma moça do sertão baiano ao poeta Castro Alves, na visão de Jorge Amado, ‘o mais belo espetáculo de juventude e de gênio que os céus da América presenciaram’. 

Ela pressentiu o poeta ser levado aos descaminhos do amor por Idalina, companheira com quem viveu numa casinha em um bairro retirado do Recife. Ouviu dizer dos embates do poeta na Academia Recifense em defesa da artista portuguesa Eugênia Câmara, que posteriormente seria sua obsessão amorosa, contra o também poeta Barreto em defesa da atriz Adelaide Amaral. 

Eugênia Câmara já era uma balzaquiana quando conheceu o poeta. Viva, esperta, de pronúncia carregada, morena, olhos negros, sorriso contagiante, seios fartos e provocantes, fazia versos e se tem notícias de sua sagacidade no contentar seus admiradores sem despertar ciúmes. Uma verdadeira armadilha para um jovem poeta de 20 anos. Na cidade de São Paulo um flagrante. O poeta no dizer de seus biógrafos não se portou como homem aos costumes da época. Ao contrário, enxotado da casa da amante, fez cenas de ciúmes e amargou noites de insônia e dor. Andanças solitárias em caçadas nos subúrbios paulistanos um acidente com arma de fogo lhe custou a amputação de 1/3 da perna esquerda. Não se tem notícia sequer de uma visita de Eugênia Câmara ao poeta. Em decadência, a atriz que recebeu os mais belos versos castrinos passou a uma vida desregrada, em meio a orgias e vícios propiciando-lhe adjetivações como bancante, messalina, libertina, entre outros.

Ao final do ano de 1869, o poeta Castro Alves volta para Salvador doente do peito, mutilado e desiludido no amor. Aconselhamento médico o leva de volta a Curralinho, no interior do Estado. Em 1870, toma o vapor de Cachoeira e sobe o rio Paraguaçu em busca do espaço mágico de sua infância, da qual havia feito parte Leonídia.

No caminhar do poeta no tempo e no espaço, Myriam Fraga, passa ao registro histórico desse resgate, que sob o ponto de vista do poeta, no dizer da autora, sob o ponto de vista do poeta: 'um novo amor, um sopro de vida e de esperança - último raio de sol no crepúsculo que advinha', do ponto de vista de Leonídia, ' um único amor, a dádiva final, mesmo sabendo que nada mais é possível - Amor, eu não sou digna, mas dizei um só poema e minha vida será salva. Justificada'.

No primeiro capítulo, A volta, a autora descreve os momentos meditabundos desse regresso; o momento em que lhe vem a mente versos de Fagundes Varela que o levou a agarrar-se a um ‘discreto caderno’ e com sua caligrafia elegante iniciar o poema Versos de um viajante, no entendimento da autora, quase que uma oração de passagem.

No segundo capítulo, Reencontro com a terra, a difícil chegada a Nossa Senhora do Curralinho, onde foi hóspede de dona Joana Constância, sua prima em segundo grau, em cujo sobrado havia passado férias escolares em companhia de Leonídia Fraga. Ali, o poetou Aves de arribação, dado pelos seus biógrafos como lembrança dos tempos no Recife com Idalina.

Hoje a casinha já não abre à tarde
Sobre a estrada as alegres persianas.
Os ninhos desabaram... No abandono
Murcharam-se as grinaldas lianas.

Que é feito do viver daqueles tempos?
Onde estão da casinha os habitantes?
... A Primavera, que arrebata as asas...
Levou-lhe os passarinhos e os amantes!...

No terceiro capítulo, Três anjos: uma mulher, a autora critica a posição de alguns estudiosos ignorarem a importância de Leonídia na vida do poeta, e a outros, que a referencia de passagem, às vezes apresentando-a como uma criança, ora adolescente, sem compreensão do significado do amor. Não consideram que o poeta e a Flor do Sertão possuíam a mesma idade. Os três encontros do poeta com Leonídia durante suas existências ficaram registrados no poema ‘Fé, Esperança e Caridade’.

Quando a infância corria alegre, à toa,
Como a primeira flor que na lagoa,
Sobre o cristal das águas se revê,
Em minha infância refletiu-se a tua...
Beijei-te as mãos suaves, pequeninas,
Tinhas o palpitar de asas divinas...
Eras – o Anjo da Fé!...

Depois eu te revi... Na fronte branca,
Radiava entre pérolas mais franca
A altiva c’roa que a beleza trança!...
Sob os passos da diva triunfante,
Ardente, humilde arremessei minh’alma,
Por ti sonhei – triunfador – a palma,
Ó – Anjo de Esperança!...

Hoje é o terceiro marco desta história,
Calcinada aos relâmpagos da glória,
Descri do amor, zombei da eternidade!...
Ai não! – celeste e peregrina Déia,
Por ti em rosas mudam-se os martírios!
Há no teu seio a maciez dos lírios...
Anjo da caridade!...

No quarto capítulo, O Hóspede, o poeta esboça o desejo de partir. No entender a autora, sente falta dos aplausos, das lisonjas, da glória de ter a platéia rendida ante a força de seus versos. Leonídia percebe e tenta dissuadi-lo. Em resposta lhe entrega o poema O Hóspede, inspirado na dor de Leonídia ao pressenti-lo.

Onde vais estrangeiro! Por que deixas
O solitário albergue do deserto?
O que buscas além dos horizontes?
Por que transpor o píncaro dos montes.
Quando podes achar amor tão perto?...

A volta é adiada. Acaba cedendo aos apelos de Leonídia. A saúde agrava. É recomendado a recolher-se à fazenda Santa Isabel, de propriedade do amigo e irmão de Leonídia, que os acompanha.  Ali, o poeta sob os cuidados da Flor do Sertão retoma o poema Os Escravos, poeta outros para a série Cachoeira de Paulo Afonso, e sonha com a epopeia de Palmares, abortada pela morte prematura.

No quinto capítulo, Se eu te dissesse..., a autora faz uma viagem pela personalidade do poeta em relação a seus amores, a facilidade, porém, com que se entregava a estes assomos e a rapidez com que trocava o objeto de sua eleição faz-nos desconfiar que mais que as múltiplas mulheres o que realmente o atraia era a sensação de enamoramento, a força que faz o coração bater mais rápido. O amor do amor, eis o sentimento que na verdade animava seu coração insatisfeito. [...] Diante da pureza desta mulher que se entrega, tão vulnerável em sua paixão desmedida, impõe-se não tocá-la para que não se quebre o vidro que a resguarda, como uma redoma de fúria e de inocência. Prefere uma estrela famosa, festejada como atriz e desejada como amante. Em setembro o poeta regressa a Salvador deixando a Leonídia o poema Se eu te dissesse...

Se eu te dissesse que cindindo os mares,
Triste, pendido sobre a vítrea vaga,
Eu desfolhava seu nome as pétalas
Ao salso vento, que as marés afaga...

Se eu te dissesse que por ermos cimos,
Por ínvios trilhos de uni país distante,
Teu casto riso, teu olhar celeste
Urgia o lábio ao viajor errante;

Se eu te dissesse que do alvergue à ermida,
Do monte ao vale, da chapada à selva,
Junta comigo vagueou tua alma, 
Junta comigo pernoitou na relva;

Se eu te dissesse que ao relento frio
Dei minha fronte à viração gemente,
E olhando o rumo de teu lar - saudoso,
Molhei as trevas de meu pranto algente;

Se eu te dissesse, pela flor das salas!
Que eu dei teu nome dos sertões as flores!...
Eu ousei, na trova em que os pastores gemem,
Por ti, senhora, improvisar de amores.

Se eu te dissesse que tu foste a concha
Que o peregrino traz da Terra Santa,
Mago amuleto que no seio mora,
Doce relíquia... Talismã que encanta!...

Se eu te dissesse que tu foste a rosa
Que ornava a gorra ao menestrel divino;
Cruz que o Templário conchegava ao peito
Quando nas naves reboava o hino;

Se eu te dissesse que tu és criança!
O anjo-da-guarda que me orvalha as preces...;
Se eu te dissesse - foi talvez mentira" -
Se eu te dissesse... Tu talvez dissesses...

Nota de Myriam Fraga: Uma das mais enigmáticas poesias da lirica de Castro Alves quanto à sua inspiradora. Escrito na Fazenda Santa Isabel, o poema é uma declaração de amor que dá testemunho de um sentimento eternizado através do tempo. Se lembrarmos a composição Fé, Esperança e Caridade, e que também está patente a permanência de um amor que, nascido na infância, acompanha a trajetória do poeta nas várias fases de sua vida, podemos imaginar que a lembrança de Leonídia, a amiguinha de infância,  a jovem encantadora que o enfeitiçou na adolescência, a mulher que o amparou na adversidade e na doença, tenha sido realmente uma fonte constante de inspiração.

Não podemos esquecer porem, que mais que um fingidor, o poeta é um multiplicador. Ele cria sobre o que foi, o que poderia ter sido e o que gostaria que tivesse sido.

Resta a ambiguidade, que torna o poema uma caixa de segredos, um caleidoscópio de sonhos: se eu dissesse... Pragmática a musa desconfia: Foi talvez mentira...

Para completar o quebra cabeça, o poema, que foi dedicado a Franklin de Menezes Fraga, irmão de Leonídia, com dedicatória 'Ao tapageateur Franklin', tem correspondência com recitativo , de Fagundes Varela (VARELA, Fagundes. Recitativo. In: VARELA, 1943, p. 87 - 88) o que faz pensar que tenha sido escrito a partir de um mote, seja um assunto, uma ocorrência, uma situação.

O poeta costumava manter um diálogo permanente com os autores de sua predileção e com amigos, dai sua correspondência cheia de alusões e a constante recorrência às epígrafes nos poemas.

Fonte: SINDERÉSE. www.itaparica.1954.blogspot.com

Partiu para onde lhe aguardavam os novos amores, o livro e a morte.

No sexto capítulo, A noiva, a autora fala de um casamento mal sucedido de Leonídia após a morte do poeta,de sua enfermidade diagnosticada como, psicose de involução, que a levou a uma internação no Hospício São João de Deus, a antiga Quinta da Boa Vista, onde na juventude o poeta habitou com Eugênia Câmara. Em sua ficha hospitalar consta a seguinte declaração: Fui forçada a separar-me de meu marido porque era noiva do poeta Castro Alves e, por isso, era mister que preenchesse o papel de casada e de noiva ao esmo tempo’. Em delírio Leonídia trazia consigo um pequeno embrulho  que não a ninguém confiava. Um mistério. Um segredo. Segundo depoimento do doutor Lopes Rodrigues, que a assistiu em seus últimos instantes, nele continha papéis velhos, restos de poemas, cadernos de pensamentos, receitas de doces, rezas e esconjuros.

A jovem cujo ‘seio virginal, que a mão recata, / Embalde o prende a mão...cresce, flutua...' morreu velhinha, miserável, demente, mas noiva do poeta.


Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)