8 de outubro de 2013

PAPISA JOANA, Emanuel Royidis: traduzido por Octávio Mendes Cajado da versão inglesa de Lawrence Durrell. Rio de Janeiro. Distribuidora Record

Publicado em 1886, causando horrores a Igreja Ortodoxa que o colocou em seu índex e excomungou seu autor, o livro, um clássico da moderna literatura grega, conta a história de uma mulher inglesa que assumiu o trono de São Pedro durante a Idade Média, por volta do século IX, com o nome de João VIII. Lenda? Realidade? Mistério? Sensacionalismo? Sátira? Há controvérsias.

Sobre o autor, Emanuel Royidis, escreve Lawrence Durrell, a quem o livro foi apresentado num passeio pelos arredores de Atenas, em 1939, pelo amigo Katsimbalis, na vitrine de uma livraria onde se enrugava ao sol. _ Aí está um bom livro – grunhiu Katsimbalis, batendo no vidro com sua imensa bengala, enquanto rolava de uma perna para a outra. _ É o tipo de livro maroto, um livro grego, cheio de  troças, mau gosto, riso e irreverência. Voltando a Royidis, tendo herdado um modesto patrimônio, viajou extensamente e estudou na França e na Alemanha. Republicano, era naturalmente anglófilo, e leu muita coisa em inglês, por prazer e para instruir-se. Já maduro, teve dificuldades de dinheiro e, durante o tempo em que Tricoupis exerceu o cargo de Primeiro-Ministro, foi diversas vezes nomeado funcionário da Biblioteca de Atenas, de onde foi desalojado pela facção realista, que depois assumiu o poder. Viveu pobre nos últimos anos – mas a sua figura barbuda e atarracada era familiar a quantos frequentavam as pequenas tavernas e as pensões da Plaka ateniense. A surdez progressiva deu-lhe aos traços uma expressão de urbanidade e alheamento, que se apropriava muito bem ao criador de Joana. Como ensaísta e panfletário era conhecidíssimo do público ateniense, mas é muito para duvidar que alguma de suas obras nesse campo justificasse uma tradução. Ele foi um homem de um livro só – e, tendo-o escrito, precisou inúmeras vezes defendê-lo, o que sempre fez com muito espírito, ironia e graça. Surdo à crítica literária como tal, melindrava-se, porém, quando insinuavam que a Papisa Joana era uma figura apócrifa. Insistiu até o fim em que pouco enfeitaria a história original, e o seu panfleto sobre as provas da existência da Papisa abriu as comportas de todas as torrentes represadas de retórica e erudição com que ele não quis sobrecarregar a narrativa. Pois Royidis, apaixonado por Joana, não queria vê-la tratada como um mito do século nono.

A história de Joana tem seu início no ano de 818 em Ingelheim, onde foi batizada na corrente gelada do rio Meinengen, pelo marido de sua mãe, Judite, uma vez que foi fruto de um estupro. A pequena Joana desde o inicio de sua caminhada histórica eclesiástica chama a atenção. Recusava os seios da mãe nos dias de quarta e sexta-feira ou durante um período de jejum, às vezes afastando o rosto, horrorizada. Seus primeiros brinquedos foram cruzes, relíquias e rosários. Aprendeu o padre-nosso em inglês, grego e latim antes do primeiro dente, quando já ajudava o pai, desculpe-me, o marido de sua mãe, na catequese das crianças de sua idade. Ficou órfã de mãe aos oito anos de idade, quando no ombro do coveiro proferiu a oração fúnebre de sua mãe.

Logo a desgraça abateu sobre ambos. Mas por um curto período de tempo. Erasmo asseverou algures, que um homem ajuizado pode aprender uma porção de coisas úteis com um urso. E foi o que aconteceu. O velho monge lembrou-se de um dia em que assistiu um desses animais dançando, enquanto seu dono coletava dinheiro entre os espectadores. Eureca! Treinou Joana, uma menina de 10 anos de idade, em perguntas e respostas sobre conhecimento geral que estendia da teologia à culinária. Ao se apresentar nos castelos o velho monge iniciava a sabatina que em seguida era assumida por espectadores, e a menina respondendo na maior desenvoltura. Ao final, Joana fazia de seu avental uma espécie de sacola onde era depositado desde moedas até gêneros alimentícios. Necessidades básicas deixaram de existir. Por um período de cinco anos percorreram os castelos e mosteiros da região do Vístula. Porém, a dor que nos causa a perda de alguém muito próximo lembra a extração de um dente – a dor é aguda, porém instantânea. Depois de enterrar o velho monge, caminhou até o riacho próximo para lavar a face, quando viu seu rosto no reflexo da água se deu conta de estar só. O cansaço lhe abateu à sombra de um arbusto. Dois vultos aproximaram. Uma alcoviteira lhe propondo os prazeres da carne numa vida promíscua, e outra, os mesmos prazeres, só que, resguardados pelo recato. Uma das duas propostas haveria de abraçar. Neste momento de indecisão, outra visão dentro daquela. Viu-se sentada num trono tão alto que a sua cabeça, sobre a qual repousava uma tríplice coroa, quase tocava as nuvens; uma pomba branca pairava junto dela e refrescava-a com o ar produzido pelo bater das suas asas. Multidões se ajoelhavam ao pé do trono; algumas pessoas moviam turíbulos de prata, dos quais se elevava o incenso, que se adensava em torno dela em nuvens olorosas; outros subiam longas escadas para alcançar-lhe os pezinhos e beijavam-nos, devotos. Despertada solicitou àquele que lhe oferecia consolo que a encaminhasse para o convento mais próximo. Utilizando-se do dedo indicador, o velho Arculfo, apontou para Mosbach. Joana agradeceu e partiu. Naquele momento havia optado pelos prazeres resguardados pelo recato.

Do convento de Blitrudes, os fugitivos cavalgaram por quatro horas até de um lago, cuja margem abrigara a estátua de Irmensul, arremessada às profundezas por um sopro de São Bonifácio. Como seus antigos adoradores, o monge Frumêncio e a monja Joana ofereceram algumas gotas do sangue de ambos ao afogado, selando aquela união e, tirando um hábito de monge de seu alforge instou à amada para que aceitasse. Ali morria a noviça do convento de Santa Blitrudes ao tempo em que nascia o mais novo noviço do convento beneditino de São Fuldas. Dessa maneira poderemos viver tranquilos na mesma cela, comendo da mesma travessa, mergulhando as nossas penas no mesmo tinteiro; ao passo que, se descobrirem que é mulher, serás encerrada nos aposentos destinados às mulheres, com outras monjas, e eu morrerei de desespero diante da tua porta, justificou o amado para sua atitude. Foram sete anos de convivência diuturna em São Fuldas, até serem descoberto por um monge eunuco o que os obrigou a uma fuga para evitar a prisão a pão e água. Tal qual Ulisses, no poema de Homero, viveram uma verdadeira Odisseia até chegarem à Grécia, onde com o passar dos anos Joana se deixou levar pela vaidade, permitindo que o segredo de ambos alcançasse as ruas. Chegou a ser vista como monstro mandado pelos francos para subverter a Igreja Ortodoxa. Joana ao refletir que sua sabedoria provavelmente permanecesse desconhecida e sem quem a contasse fora do mundo Ático, passou a sofrer da ‘síndrome de jovens freiras’, que ao se despirem à noite, recordam que sua lirial formosura só será vista pelo noivo imaterial e invisível. Era chegado o momento de partir. Mas partir só. Como? Simples carícias com os dedos nos cabelos e o hálito quente na face foi o suficiente para que o amado esquecesse os maus tratos e até as traições. Cansado adormeceu. Ao acordar no dia seguinte procurou Joana por toda a cidade e não a encontrou. Havia partido para a cidade de Roma, em carona numa embarcação pertencente ao Bispo de Gênova, substituindo o padre que morrera durante a viagem.

Numa noite, São Bonifácio a quem Frumêncio havia gritado por socorro pelo abandono de Joana apiedado pelo sofrimento do monge beneditino, desceu dos céus abriu o peito do rapaz adormecido com uma faca, enfiou os dedos santificados na ferida e dali retirou o coração, mergulhando-o num buraco cheio d’água previamente benzida. O coração que ardia chiou na água benta como anchova em frigideira. Quando esfriou, o santo recolocou-o no lugar e, depois de haver fechado a ferida, regressou ao céu. [...] Dali a pouco passou por ele uma jovem ordenhadora, carregando a ânfora de leite na cabeça e uma grinalda de flores na mão direita. Chamou-a e desfrutou-a completamente. E quando Amarilis tirou a moeda de cobre dos dedos dele, beijou-lhe a mão e seguiu o caminho... Frumêncio, em pé, quedou-se a contemplá-la, compreendendo, pela primeira vez, que na vida, havia outras mulheres no mundo além de Joana. A sua cura pode considerar-se completa. Um milagre do santo salvou-o de uma tola paixão e, consequentemente, ele se torna inútil para nós daqui por diante como herói deste romance – conquanto, a partir de então, se tornasse muito mais útil, como membro da sociedade [...] apto a exercer a profissão que desejasse [...] muito sabiamente, decidiu continuar monge.

Em Roma, padre João não gastou mais que uma hora para impressionar o sumo pontífice que o nomeou mestre de teologia na Escola de São Martinho, onde Santo Agostinho ensinara. Ali, onde a maioria dos padres não sabia ler, João se transformou em pouco tempo num novo Agostinho. Logo sua santidade, alquebrado pelos anos, o nomeou secretário particular. Não demorou muito para que o papa partisse ao encontro do divino. Joana, empolgadíssima não sabia se agradecia a Deus ou ao Diabo. Além dos 400 alunos, Joana contava com os votos dos cortesãos que lhe deviam favores, das mulheres que a admiravam, por aqueles que admiravam sua sabedoria e eloquência. Enquanto se discutia entre os súditos quem seria o novo papa, Joana permanecia imóvel no alto do terraço do mosteiro de São Martinho. Depois de quatro horas foram ouvidos os gritos de seus adeptos saudando João VIII, a profecia através dos sonhos após o enterro do marido de sua mãe se confirmava, a tríplice coroa 'Roma, Mundo e Céus' lhe foram posta sobre a cabeça. Acabava de se tornar senhora absoluta, por direito divino, das almas e dos corpos dos homens, para não falar na administração do Mundo, do Paraíso e do Inferno.

Não demorou muito para irritar-se com o 'estende pé' para os beijos de seus súditos; lembrava com saudade o 'estende lábios' para Frumêncio e seus amantes beijá-los. Embora não acreditasse que Deus houvesse colocado tantas coisas boas diante de nós para serem resistidas, temia as três guardiãs da castidade feminina – o escândalo, a maldade e a gravidez. Joana bem que resistiu, mas a volúpia falou mais alto. Assediou Floro, filho de seu antecessor, com apenas 20 anos de idade. Exercia o cargo de camarista privado. Dormia em um quarto contíguo aos aposentos papais. No primeiro encontro esqueceu-se de cobrir a imagem da Virgem no quarto do amante. O rubor permanece na face da 'madona' até os dias atuais. O Cristo crucificado, de vergonha, caiu no chão e espatifou-se. O Anjo da Guarda de João VIII fechou os olhos diante de tanta abominação. No dia seguinte parecia outro o sumo pontífice. Radiante, sorridente e distribuindo bênçãos a todos que encontrava pela frente. Neste dia, sua Santidade distribuiu quatro bispados, ordenou dezesseis diáconos, acrescentou dois santos ao calendário, comutou a pena de cinco condenados à força e salvou vinte hereges da fogueira. E ainda lamentou não possuir as cem mãos de Briareu para centuplicar as suas caridades.

Por não acreditar que Deus houvesse colocado tantas coisas boas diante de nós para serem temidas, não temeu as guardiãs da castidade. Contorcendo-se no chão era observado pela multidão que esperava o 'espírito imundo', que tanta desgraça causara à Cidade Santa naqueles dias, sair pela boca ou ouvido do Santo Padre, mas, o que se viu foi à retirada de uma criança prematura entre as luxuosas vestes papais.


Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)   

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