A par de Cristo e Abraham Lincoln, Napoleão é a personalidade sobre
quem mais se escreveu. Cerca de quarenta mil trabalhos, entre biografias,
ensaios, peças de teatro, artigos se contam acerca do tema[i]. Porém, todos, sem exceção, viraram e reviraram, mexeram e remexeram,
pesquisaram e tornaram a pesquisar com o fito de encontrar o verdadeiro, o real
Bonaparte... E no fundo a explicação é tão simples: Napoleão foi apenas...
Napoleão! Seus arrebatamentos, com poucas exceções, tiveram sempre a norteá-los
um interesse superior ou visaram uma satisfação meramente fisiológica...
Na infância, com Giacominetta, os
primeiros passos na arte de amar acompanhados de perto por sua mãe, Letizia
Ramolino, e das amas - Camila e Catharina. Amor inocente. Amor que jamais ousou
além de um beijo numa tarde de chuva. Amor que soube por parte dela aceitar o
outro com sua personalidade; com a revolta pela derrota de sua terra
natal: Mamma, tudo perdido! Paoli
rendeu-se. A Córsega já não existe! Amor que manifestou ciúmes e medo
diante do desejo dele, em lutar pela soberania da pequena ilha com a espada do
apóstolo Paulo, a quem havia oferecido uma vela numa de suas visitas a Igreja. A história não se repete. Também, ela é um
rio cujas águas jamais voltam atrás. Pouco tempo depois, Giacominetta ouvia soar a estridente sirene de um navio minúsculo e sujo. Era o anúncio de partida para o
continente. Nele, o amor de infância seguia rumo à França em busca melhor
escolaridade. Ficavam a saudade, as lágrimas, às lembranças, o gosto do
primeiro beijo e a curiosidade feminina
nascente que fazia suas primeiras cócegas.
Bernardine Eugênie Desirèe Clary,
menina-moça, de formas arredondadas, cabelos castanhos presos em coque, nariz
graciosamente arrebitado. No rosto sobressaindo os olhos espertos e saltitantes
e a boca pequena, sensual e ingênua que no primeiro encontro sentiu ao mesmo
tempo a ternura e a violência dos lábios do general. Desirèe, a caçula da família Clary,
comerciantes de tecidos de Marselha. Logo, teve que se arriscar ao visitá-lo na prisão. De um
lado, ela apavorada, e de outro, ele falando estar bem! Muito bem, a ponto de lhe
falar da proposição de organizar um regulamento para os presos. Um regimento
interno rígido! Naquela prisão qualquer um poderia fugir.
Uma questão de vontade e determinação. Era fugir, ou esperar que o levasse a
guilhotina. Desirèe levava um bolo de aniversário, e dentro dele,
uma mensagem de Junot. Saia com uma correspondência para Junot e outra para a
Convenção. Cinco meses haviam se passado. Eugenie! grita Marie, com uma carta
nas mãos. É de Paris! Ao abrir a missiva uma decepção: ‘Eugenie querida, abraços. Lamento não poder ausentar-me e levar
pessoalmente a boa nova. Sou o comandante da Guarda de Paris. Tudo aqui me
sorri. Reconhecem o meu valor. Já não é sem tempo... Jamais poderei agradecer o
quanto você, me auxiliou... Agora que nossas vidas se distanciam... Tomam rumos
diferentes... Eu desejo que a felicidade nunca se afaste de você... Talvez...
No futuro...’. Neste instante, José, irmão do general e cunhado de Desirèe interveio:
_Que diz Napoleão? A essas alturas, Napoleone Buenaparte 'deslatinizava-se' para Napoleão Bonaparte. Como poderia um general corso,
com o nome grafado em italiano assumir a França? _Não há notícias de Napoleão, respondeu
Desirèe, calma, sem raiva, sem mágoas, apenas com um enorme vazio no peito e um vácuo na
alma.
Uma balzaquiana com tez cor de
malte. Exótica e de trejeitos graciosos. Ar indolente, cheio de ternura e pleno
de promessas. Cumpre o verdadeiro ritual francês ao levantar levemente o lábio
superior ao falar. O general questiona pela senhora. _A de roxo! _Ah não, Napoleão! Josefina não! Viúva, pobre, perigosa e amante de Barras. Depois de
comandar o exército republicano num verdadeiro banho de sangue nas escadarias
da Igreja de São Roque, salvando a Convenção e dando conhecimento à França de
seu novo amo, Napoleão recebe um jovem solicitando a guarda da espada do pai. Seu nome? Eugênio Beauharnais, filho daquela que lhe encantara. Concede a
guarda da arma ao garoto e pede ao mesmo que leve alguns papéis à Josefina.
Eram os recibos de quitação de aluguéis atrasados. Daí para o enlace matrimonial entre
ambos foi quase nada. Bonaparte obtém votação favorável ao Império. A gigante
nave da Catedral de Notre Dame tornara minúscula diante de tamanho evento.
Fogos espocavam. Bandeiras esvoaçavam. Rufavam-se os tambores. Por ordem de
Bonaparte, o cetro havia sido copiado do original de Carlos Magno, também, a coroa de
louros de ouro. O papa Pio VII, inesperadamente, vê o diadema ser arrancado
de maneira abrupta de suas mãos. Era Napoleão. Auto se coroou na noite de natal do ano de 400. Em seguida
coroava Josefina. A única tarefa papal foi abençoar o imperador e a imperatriz.
Ao passar pelo antigo notário de Josefina, Raguideau, se dirige a imperatriz ironicamente:
_Ainda achas que eu só tenho a capa e a espada? Naquele momento ele tinha a
França! O que é um império sem um
herdeiro? Napoleão via nele a perpetuação de sua obra, então: _Perdi a esperança de ter
filhos de meu consórcio com a Imperatriz Josefina. É isso que me leva a
sacrificar a mais doce afeição de meu coração, a escutar apenas o bem do
estado... ’ Na manhã seguinte Josefina deixava as Tulherias onde imperou
por mais de dez anos. O grande coche vai diminuindo de tamanho em proporção a
distância percorrida. Nas escadarias do palácio, um homem enxuga lágrimas que
banham sua face, em uma das raras vezes em sua vida.
De um lado um imperador precisando
de um herdeiro; de outro, da França clamando por segurança através da
estabilização do regime; por isso, Napoleão foi ao encontro de Maria Luisa. Por
ele, teria desposado Walewska, mas precisava de um filho na dinastia. Uma Habsburgo daria a ele a legitimidade almejada. A princípio ela refugou. Mas, quando recebeu a primeira carta, ao passar os dedos sobre o
sinete em relevo com as representações das armas francesas, nos seus dezesseis
anos, despertou: dentro de pouco tempo poderão ser os meus brasões. Eu, Maria Luisa,
imperatriz da França! Já casados, chovia muito quando do encontro de ambos. Da
parte dela, um susto o encontrá-lo encharcado, porém, assim reagiu ao
esposo: sois bem melhor que vosso
retrato. Napoleão não teve tanta sorte. Maria Luisa não era bonita. Pálida,
Magra, com sinais de bexigas, lábios grossos, olhos azuis descorados, plácidos e bovinos, e mais alta que ele. Seu consolo foi observar seu busto elegante saltando sem recatos à luz
das casas, durante a passagem por uma cidadela. Num parto complicado a imperatriz
deu ao esposo o tão esperado varão. Os sinos se fizeram ouvir, o povo saiu às
ruas e os canhões troaram. Em 5 de abril de 1815, Napoleão abdica em
Fontainebleau e segue para a ilha de Elba, de onde manda o conde Laczinski buscar
Maria Luisa e o filho, 'o rei de Roma'. A principio a imperatriz fica reticente, e, quando
concorda com o plano do marido é impedida pelo militar que seu pai, Francisco
da Áustria, colocara para protegê-la. Reagiu energicamente até que soube que o
enviado de Napoleão era irmão de Maria Walewska, que se encontrava em Elba. O
estafeta volta com uma carta da imperatriz, a última a Napoleão, onde declara
‘não quer, nem deve, mais ir à ilha de Elba’.
'Se fosseis homem teríeis entregado vossa vida à causa da pátria. Sendo mulher, não podeis servi-la nos campos de batalha. Mas há outros sacrifícios, aos quais não vos deveis furtar... Acreditais que Ester se entregou a Assuerus por amor? Ela, porém, sacrificou-se pela pátria e teve a glória de salvá-la. Possamos nós, dizer coisa idêntica de voz’, apelo do governo provisório da Polônia a Maria Walewska. O Palácio Walewice serve de abrigo para socorro de um cavaleiro do exército do imperador, Duroc. Deles aproxima-se uma jovem com uma camisola a esconder sua nudez. A transparência do tecido realça sua beleza expondo suas formas. É linda! Uma beleza diferente de tudo que o imperador tinha visto na França. Miúda, mimosa, delicada, de olhos azuis profundos e tristes, nariz reto embelezando uma boca de lábios róseos polpudos. A jovem estende a mão aos cumprimentos e o imperador ouve-lhe o nome, Maria Walewska. De um lado, um imperador sedento, de outro, os poloneses fazendo pressão para que Walewska, casada, se tornasse amante de Napoleão em nome do amor pátrio. Deu ao imperador o seu primeiro filho, Alexandre, com quem foi visitá-lo na ilha de Elba. Numa tarde, os sinos da igreja da aldeia de Marcianna ecoavam tristes pelos espaços infindos. Napoleão ternamente dirigiu-se a Walewska: _Sempre amei os sons de sinos de aldeia. Naquele momento, Maria entendeu que era o momento de partir... Seria muita pretensão querer deter o homem que deteve o mundo!
_Mas, vossa majestade não é um
homem comum. É Napoleão! Responde uma jovem bonita, loira olhos azuis, nariz
arrebitado, boca brejeira, corpo de mulher coberto com um vestido azul, a um
questionamento do preso mais famoso da ilha de Santa Helena. Num passeio a
cavalo, numa dessas paragens para descanso, sua majestade batia com o chicote em
uma das mãos, quando Betsy Balcombe ergue a mão e prende-o, roçando sem querer
os dedos na mão do imperador. Olhares se confundem. Mãos se juntam abrindo caminho para os lábios
que se entrelaçam com fúria, levando-os a circundar um bosque de gouveias... Betsy era apenas uma menina. Criança que em brincadeira chegou a colocar a ponta da espada no botão da jaqueta do imperador como se fosse arrancá-lo. Um romance 'espetaculoso' que corria de boca em boca na pequena ilha. Em
nome da glória de antanho, um de seus generais 'pisando em ovos' o aconselha afastar-se de Betsy. Aos berros, no jeito Napoleão de ser acabou cedendo. Em nome da Glória! Moribundo,
entre os sussurros desconexos, uma palavra e uma frase são inteligíveis: ‘França’ e ‘cabeça de exército’. Depois o silêncio...
*******
A tempestade amainou.
O canhão troa. O caixão desde à campa. É um
túmulo simples. No vale do Gerânio, bem ao lado da fontezinha, onde os criados
chineses iam buscar a água cristalina para ele. Três salgueiros solitários
estendem, sobre o jazigo, sua sombra amiga.
Colocam a laje.
Vagarosamente todos vão deixando o vale.
Não fica ninguém...
As sombras começam a descer. Escurece. No
crepúsculo, amoitadas, fardas vermelhas, cuidadosas, espreitando, aproximam-se.
São soldados de Inglaterra! Da guarnição de Santa helena! Acercam-se do túmulo.
A uma voz de comando perfilam-se. Apontam as armas. Fogo! Uma salva! A
derradeira, às escondidas.
Cautelosos, temendo castigos, os soldados
afastam-se. Por último, vem um sargento, pela mão puxa um garoto.
_Por que esse segredo, papai?
_Porque esse homem é Napoleão.
O menino estranha.
_Mas Napoleão não foi inimigo da
Inglaterra?
O sargento inglês, veterano de tantas
batalhas, pensa um pouco. ‘Inimigo? Ele? Seria? Waterloo... A carga da
cavalaria de Ney’... – coça o antebraço esquerdo, bem na cicatriz, lembrança
entusiástica da Guarda: Viva o Imperador! Pousa a mão na cabeça do menino e responde:
_Não, meu filho, Napoleão foi o maior soldado do mundo!
Idibal Almeida Pivetta, autor
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O último capítulo recebe o título de ‘o verdadeiro amor’. À época da
ocupação nazista, um historiador perambulando pelas ruas de Paris resolve ir
até o túmulo de Napoleão, nos Inválidos, para por a prova a história de uma
mulher vestida de preto, com a face velada, que costumeiramente era vista
colocando flores vermelhas no túmulo do imperador. E conseguiu... Seu nome,
GLÓRIA!
Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)

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