Literatura e Psicanálise –
existe relação entre elas? Uma coisa é certa, a literatura pré-existe à
psicanálise. Depois, Gilcia Gil Becker assevera
que ‘como fruto da subjetividade e forma sublimatória da pulsão, a literatura
fornece preciosos elementos para análise das manifestações inconscientes’, reporta
a Freud ‘que sempre reconheceu o quanto a arte e a literatura anteciparam e
confirmaram as descobertas da clínica psicanalítica’. O grego Sófocles que o
diga!
Jeanette Rozsas nos coloca
como psicanalista numa cadeira ao lado de um divã onde Franz Kafka se dispõe a
falar de sua infância interrompida, de sua adolescência roubada, das
invalidações, de sua mente inquieta. Na adultez, os esforços frenéticos para
evitar um abandono real ou imaginário; relacionamentos instáveis; perturbação
de identidade com resistência a autoimagem; recorrência a pensamentos suicidas;
instabilidade afetiva; sentimento crônico de vazio.
Não se trata de obra de
ficção. Jeanette construiu os diálogos com esmero cuidado na seleção de cartas
e diários do biografado e seus amigos mais próximos. Traz desde a sua
introdução um extraordinário texto descritivo sobre a cidade de Praga do quarto
quartel do século XIX. Texto que se prende aos detalhes valorizando as mínimas
coisas. Uma paisagem que se confunde com o próprio Kafka. Praga e Kafka se
fundiram em uma só entidade. A beleza de sua obra acabou por adornar uma joia
esculpida pelos mais belos artistas do Império Austro-Húngaro, a cidade velha
de Praga.
A autora começa a projetar a
personalidade de Kafka a partir da realidade vivida pelo seu pai, Hermann
Kafka, em sua convivência familiar na infância e adolescência; sua ida para a
cidade de Praga onde conheceu Julie, que mais tarde lhe daria três filhos do
sexo masculino: Franz, Georg e Heinrich, dos quais somente Franz Kafka
sobreviveu. Na primeira vez que viu o filho Franz, Hermann o rejeitou por não
se tratar da criança esperada. Ao invés de um brutamonte, forte, corado,
guloso, que chorasse aos plenos pulmões dia e noite, característica dos
‘Kafka’, Franz era uma menino miúdo, magro, quieto, chorava quando com fome, de
boa índole e com os cabelos pretos como os da família de sua mãe, os Löwy.
Georg, o segundo filho, nasceu com todas as características desejadas por
Hermann, que em momento algum se preocupou com sua preferência a Georg que,
morreu de sarampo ainda na infância. Heinrich não era franzino como Franz e nem
um brutamente como Georg, também morreu na infância com otite. Duas perdas para
Franz, notadamente, Heinrich a quem era muito apegado. Seguiu-se a cobrança de
Hermann sobre Julie na busca de outro filho, de outro Georg. Achava Franz um
fracote. Muitas vezes chegava a falar para o menino ouvir que ele deveria ter
nascido menina. E nesses momentos exarava a frase: _Ah! Se Georg não tivesse
morrido... Invalidação total. Outras vezes quando da presença de visitas,
chegava a afagar o filho, que de medo se encolhia. Nesse momento dizia aos
convidados: _Vejam como o meu filho é medroso. Basta por a mão em sua cabeça
que ele encolhe como um ratinho! E explodia em gargalhada deixando o pequeno
Franz mortificado de vergonha. Outras vezes diante dos irmãos Hermann gritava
para Julie ouvir: _Isso Julie, carregue o menino agarrado à sua saia e você
terá um mariquinha para criar. Enquanto as risadas do pai explodiam como
trovões, o pequeno Franz lutava contra as lágrimas. Isso não deixava de ser um
abuso em referência à sexualidade do menino. Os reflexos vieram ao longo de sua
efêmera existência. Um livro necessário
à estante de psicólogos, psiquiatras, psicanalistas. Em ‘Kafka e a marca do
corvo’ o leitor não deixa de ser um analista num romance biográfico que revela
toda a subjetividade humana.
Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)